quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Sobre a situação do parto no Brasil, o que desejam as mulheres e a mágoa dos profissionais

Perfeita análise sobre a situação atual do que nós, mulheres e nossas famílias, sentimos com relação ao parto no Brasil, em geral, e como devem se sentir os profissionais de atendimento. Leiam.
Passou da hora de se sentirem magoados com os nossos protestos e reclamações e com as ativistas!
O momento é de REVER SUA PRÁTICA! É isso que esperamos e queremos!

"Eles estão muito bravos com o nome "Violência Obstétrica". E com razão. Não é fácil você prestar uma assistência que entende ser a melhor do mundo, a mais legal que existe, e depois ser chamado de violento. Não é fácil você acreditar num procedimento como sendo o salvador dos partos e das mulheres e de repente um bando de leigas vir contestar, sem nunca na vida ter pisado numa sala de parto. E mais, desde quando as mulheres têm que decidir o que é melhor para elas no parto, se nós estamos lá justamente para salvá-las da morte?

O próprio termo "parto humanizado" é para muitos extremamente ofensivo, pois faz crer que o que eles oferecem não é humano.

Pois bem, passa da hora de mudarmos o disco da mágoa e entender o que esse povo anda espalhando por aí. Aos médicos que querem entender esses gritos e sair da zona de conforto, recomendo fortemente o livro da Robbie Davis Floyd "Bith as an American rite of passage". Essa é a base da compreensão. Ali a antropóloga faz uma análise da assistência médica ao parto, destrinchando cada um dos procedimentos comumente oferecidos às mulheres e bebês.

Quem não quiser ler inglês, recomendo "Memórias do Homem de Vidro" de Ricardo Herbert Jones. Nessa obra o autor (médico obstetra) explica a assistência moderna e o que as mulheres estão pedindo, do ponto de vista da medicina, da antropologia e do consumidor. Leitura leve e profunda ao mesmo tempo.

Vamos primeiro entender que é normal e comum a situação em que uma pessoa diga "você foi violento" e o outro diga "não fiz violência, eu estava cuidando de você". Muitas mulheres ao se deitarem semi-nuas numa maca, com as pernas abertas, sendo examinadas por um ou mais desconhecidos, tendo sua intimidade invadida, ao terem as suas vaginas cortadas e re-costuradas, ao ouvirem frases do tipo "se você não parar de gritar eu não vou te ajudar", entre outros problemas da assistência, podem ficar profundamente traumatizadas. O trauma que ela carrega, apesar de não ter sido propositadamente provocado por nós, é um fato, é uma sequela, é um drama com o qual ela tem que viver.

Ainda que nós profissionais não possamos levar a alegria e perfeita solução para 100% das mulheres, é importante que nós tenhamos consciência do potencial risco de trauma por condutas que nós achamos absolutamente normais. Ainda que ver uma mulher de pernas abertas semi-nua numa maca seja algo corriqueiro e sem importância, é possível que aquela mulher esteja ali sendo marcada a ferro e fogo em seu coração, para sempre.

É preciso acordar para o fato de que nem tudo o que nós fazemos corriqueiramente é visto desta forma pela pessoa cuidada. Um exame de toque feito de forma um pouco mais abrupta pode ser percebido pela mulher como um estupro. Não é uma acusação, é um fato. Você está com pressa, você tem que atender três gestantes de alto risco, dois partos acontecendo, falta material, tem parente dando barraco na porta e aquela menina de 18 anos está ali, vulnerável, assustada, sem acompanhante. Você tem 10 segundos para examinar aquela menina. Tenha a consciência de que aquele simples exame de toque poderá deixar marcas e sequelas para o resto da vida dessa moça. Nada poderá tirar essa marca que você está prestes a deixar.

Nós podemos inclusive falar da violência que nós sofremos nas instituições, nas relações profissionais, no sistema jurídico, no governo. Mas nada justifica a violência que cometemos contra as mulheres sem nem ao menos perceber. O primeiro passo é, portanto, compreender que sim, nós profissionais da saúde podemos ser agentes de violência sem perceber. O segundo é cuidar de cada mulher, de cada mãe, de cada bebê, como se fosse nosso parente, nossa irmã, nossa mãe. Eu tenho certeza que se cada um cuidar de cada mulher como se fosse de sua família, teríamos uma situação bem melhor nos centros obstétricos.

Sem falar em todos os procedimentos que um dia nós acreditamos serem necessários e que vão caindo um a um. Quantos de nós não aprendemos que a lavagem intestinal era essencial à boa assistência? A tricotomia? O corte imediato do cordão? A separação do bebê? Um a um esses procedimentos vão caindo e é preciso abrir o coração para o que virá: episiotomia, aspiração de vias aéreas, kristeller, valsvalva, litotomia. Se nós não aceitarmos que nossa assistência pode melhorar, e que as evidências são nossas aliadas e devem ser estudadas, para que mesmo que nos formamos numa área em constante transformação?

Por fim quero lembrar que não estou falando de médicos. Estou falando de todos os agentes de cuidados obstétricos, incluindo doulas, enfermeiras, auxiliares e técnicas, obstetrizes, médicos, neonatologistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, todos! Sejamos cuidadosos e estudiosos. Sempre. Não nos ofendamos quando ouvirmos queixas sobre nossa atuação. Em vez de sentirmos mágoa, que possamos sentir curiosidade. Acho que temos sempre algo a aprender!"

Por: Ana Cristina Duarte, no Facebook.

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