quarta-feira, 13 de julho de 2011

Parto Normal vs. Cesárea - (parte 3): principais pretextos para cesariana sem respaldo científico

AUTORA: Dra. Melania Maria Ramos de Amorim

Nos artigos anteriores desta série, apresentamos a magnitude do problema das cesarianas no Brasil e comentamos que grande parte dessas cesarianas são eletivas (fora do trabalho de parto) e realizadas por pretextos que não encontram suporte na literatura científica (1-5). No presente artigo iremos discutir alguns desses pretextos.

Circular de cordão – a possibilidade de se detectar circular de cordão pela ultrassonografia tem levado a muitas indicações desnecessárias de cesariana em nosso país. No entanto, a presença de uma ou mais circulares de cordão ao nascimento representa um achado fisiológico em 20 a 37% dos bebês (6-8). Bebês saudáveis se movimentam dentro do útero e giram para um lado e para o outro, podendo formar e desfazer circulares a qualquer momento. Desta forma, é baixa a acurácia da ultrassonografia, mesmo associada à dopplervelocimetria colorida, para predizer circulares de cordão ao nascimento, uma vez que com a constante movimentação fetal, tanto um bebê com diagnóstico de circular pode nascer sem circular como o contrário, um bebê em que a ultrassonografia não detectou circular pode nascer com uma ou mais circulares de cordão. Além disso, os estudos observacionais demonstram que a presença de circular de cordão não se associa com piora do prognóstico perinatal (6-8). Em um estudo com 11.748 mulheres, a taxa de circulares ao nascimento foi de 33,7% a termo e 35,1% pós-termo. Desacelerações da frequência cardíaca fetal (FCF) intraparto foram mais frequentes na presença de circular de cordão, e eliminação de mecônio foi aumentada apenas nos casos de gestações pós-termo com múltiplas circulares. Alterações de gasimetria foram mais frequentes em bebês com circular de cordão, porém não houve aumento dos escores de Apgar menores que sete nem das admissões em UTI neonatal (8).

Desta forma, não se deve modificar a conduta obstétrica em função de um diagnóstico eventual de circular de cordão, e não é necessário pesquisar circular de cordão no exame ultrassonográfico nem anteparto nem no momento da admissão em trabalho de parto (8,9). A monitorização da FCF deve ser realizada em todas as parturientes, independente do prévio conhecimento de que existe uma circular (10). Assim, eventualmente, em caso de uma ou mais circulares cervicais apertadas levando a desacelerações da FCF, uma ausculta fetal cuidadosa pode detectar precocemente essas alterações e a conduta obstétrica nesses casos seguirá as recomendações preconizadas para uma frequência cardíaca fetal não tranquilizadora (10).

Gestação prolongada – gestação prolongada é aquela que excede 42 semanas, ocorrendo em 5% das gestações, enquanto 10% de todas as gestações se estendem além de 41 semanas (11). O prolongamento da gravidez se associa ao aumento da morbimortalidade perinatal, com maior frequência de morte perinatal, anormalidades da frequência cardíaca fetal intraparto, eliminação de mecônio e cesariana (12). No entanto, o risco absoluto de eventos perinatais desfavoráveis é baixo. Embora haja controvérsias em relação à conduta obstétrica, uma vez que alguns autores e diretrizes de sociedades recomendam indução sistemática a partir de 41 semanas e outros sugerem como alternativa a expectação com monitorização do bem estar fetal (13, 14), nenhuma diretriz específica sugere a realização de cesariana. Quando se compara conduta ativa com conduta expectante, o que se define como “conduta ativa” é a indução do parto. Em uma revisão sistemática recentemente atualizada da Biblioteca Cochrane que incluiu 19 ensaios clínicos randomizados e 7984 mulheres, os autores concluem que uma política de indução depois de 41 semanas de gravidez ou mais comparada com a conduta de expectar o início espontâneo do trabalho de parto está associada com menor risco de morte perinatal. No entanto, como o risco absoluto é extremamente baixo (2/2953), as mulheres devem ser aconselhadas em relação tanto ao risco relativo como absoluto e participar ativamente do processo de tomada de decisão em relação a uma ou outra conduta (11). Deve-se alertar que uma das consequências de interromper sistematicamente as gestações pós-termo tem sido o aumento das taxas de prematuros tardios (por erros na determinação da idade gestacional), implicando em aumento da morbidade neonatal (15).

Oligo-hidrâmnio – oligo-hidrâmnio consiste na redução do líquido amniótico, mas ainda existem lacunas na literatura sobre qual o melhor método ultrassonográfico para seu diagnóstico. Os métodos mais frequentemente usados são a avaliação subjetiva, a mensuração do índice do líquido amniótico (ILA), representado pela soma do maior bolsão de líquido em cada um dos quadrantes e a medida do maior bolsão. O diagnóstico de oligo-hidrâmnio pelo ILA é feito quando este se encontra abaixo de 5 cm. Pela medida do maior bolsão, quando se encontra um valor menor que 2 cm (15). A revisão sistemática da Cochrane sugere que a medida do maior bolsão é mais acurada que o ILA, uma vez que a medida do ILA se associa com maior frequência de oligo-hidrâmnio, maior número de induções do parto e de cesarianas, sem melhorar os desfechos perinatais (16).

A conduta na presença de oligo-hidrâmnio depende de sua etiologia, da idade gestacional no diagnóstico, da vitalidade fetal avaliada por outros métodos e da presença de outros fatores de risco associados (15). Na presença de oligo-hidrâmnio com membranas íntegras, existe a preocupação com insuficiência uteroplacentária e a literatura descreve maior frequência de eliminação de mecônio, padrões anormais de FCF intraparto e cesariana quando o ILA é menor que 5 cm. No entanto, não foram documentadas diferenças significativas em relação aos escores de Apgar e admissão em UTI neonatal (17).

Na ausência de comprometimento da vitalidade fetal, a presença de oligo-hidrâmnio pode indicar a indução do parto, a depender da idade gestacional e da associação com outras condições mórbidas (p.ex. pré-eclâmpsia e restrição do crescimento fetal). O achado isolado de oligo-hidrâmnio, principalmente a termo, não representa indicação de cesariana. Esta pode estar indicada se há alteração das outras provas de vitalidade fetal, como cardiotocografia, outras variáveis do perfil biofísico fetal (PBF) e dopplervelocimetria da circulação fetal. A antecipação do parto pode ser necessária nos casos graves de oligo-hidrâmnio associado com restrição de crescimento fetal mesmo em idade gestacional precoce. Nesses casos, a decisão pela via de parto deve se basear na condição fetal avaliada pelas provas de vitalidade fetal, especialmente a dopplervelocimetria, no peso e no prognóstico fetal, além da opinião materna (15, 19).

Macrossomia – define-se como macrossomia um peso ao nascer maior ou igual que 4000g, de forma que o diagnóstico definitivo só pode ser firmado depois do nascimento. A ultrassonografia, entretanto, permite a estimativa do peso fetal e tem sido usada em alguns estudos para a predição da macrossomia (20). A macrossomia fetal encontra-se associada com aumento do risco de morbidade materna e perinatal, especialmente paralisia de Erb e distocia de ombro, em relação àquela observada para os conceptos com peso adequado para a idade gestacional (21). No entanto, esse aumento do risco é mais evidente em gestações complicadas por diabetes (22), devendo-se diferenciar os bebês macrossômicos constitucionais daqueles filhos de mães diabéticas. Além do mais, a distocia de ombro representa uma condição imprevisível (23) e 50% dos casos acontecem em bebês com peso normal (24).

Desta forma, a macrossomia fetal per se não constitui indicação de cesariana. Sugerem-se benefícios da cesariana eletiva em fetos de gestantes diabéticas quando a estimativa ultrassonográfica excede 4.500g e em fetos de mães não diabéticas quando essa estimativa excede 5.000g. Esta tem sido a recomendação do American College of Obstetricians and Gynecologists – ACOG (25). Mesmo assim, seriam necessárias mais de 1.000 cesáreas para prevenir um único caso de lesão do plexo braquial, de forma que a indicação de cesariana nesses casos deve ser tomada em conjunto com a gestante, depois de esclarecimento dos possíveis riscos e benefícios associados (26). A indução do parto na suspeita de macrossomia fetal também não está indicada, de acordo com os resultados de uma revisão sistemática da Biblioteca Cochrane (26). Destaca-se, sobretudo, que a ultrassonografia tem acurácia limitada para estimar adequadamente o peso fetal a termo, e não deve ser empregada rotineiramente com esta finalidade, porque pode levar a cesarianas desnecessárias pela suspeita de macrossomia (27).

Prematuridade – a alegação de que em casos de prematuridade extrema haveria uma indicação de cesárea para proteger o delicado encéfalo fetal não encontra respaldo na literatura. A via de parto não influencia significativamente o desfecho neonatal em fetos vivos em apresentação cefálica entre a 24ª e a 28ª semana de gravidez (28). Realizar cesariana como rotina para partos pré-termo associa-se com aumento da morbidade materna e pode provocar um nascimento evitável, pois em casos de trabalho de parto prematuro espontâneo este poderia ser inibido (29), permitindo o uso de estratégias efetivas que realmente conferem neuroproteção, como corticoide (30) e sulfato de magnésio (31). A revisão sistemática da Cochrane não evidencia efeitos benéficos em termos de desfechos perinatais com a cesariana, que se associa, entretanto, com expressivo aumento da morbidade materna (32). Por outro lado, as evidências sobre a melhor via de parto em caso de conceptos prematuros em apresentação pélvica são escassas, apenas quatro ensaios clínicos randomizados foram publicados, somente um foi concluído e nenhum teve poder suficiente para chegar a conclusões satisfatórias (33). A maioria das diretrizes de sociedades recomenda cesariana para conceptos prematuros viáveis em apresentação pélvica. Abaixo dos limites de viabilidade, que variam conforme a região e a complexidade de cada serviço, cesariana não deve ser realizada porque a excessiva morbidade materna não se justifica face à reduzida probabilidade de sobrevida dos conceptos (34).

Baixo peso – recém-nascidos de baixo peso (menor que 2500g e muito baixo peso ao nascer (menor que 1500g) apresentam risco aumentado de cesariana. No entanto, os estudos sugerem que a cesariana não traz benefícios para esses conceptos quando o único achado é o baixo peso. Uma revisão sistemática da Cochrane envolveu seis ensaios clínicos randomizados e apenas 122 gestantes, encontrando-se maior risco de pH baixo no sangue do cordão entre os nascidos por cesariana, sem diferença significativa em relação a outros desfechos perinatais, porém com aumento expressivo da morbidade materna (32). Também não se recomenda cesariana de rotina para os conceptos pequenos para a idade gestacional, condição que pode refletir restrição do crescimento fetal, porque apesar de esses conceptos apresentarem maior risco de morbimortalidade neonatal, um possível efeito benéfico da cesariana para melhorar esses desfechos ainda não foi determinado (35)

Envelhecimento placentário precoce – o termo “envelhecimento placentário precoce” foi criado com base na classificação original de Grannum (graus zero, I, II e III de placenta), que nunca descreveu esta condição (36), mas alguns autores passaram a utilizá-lo para descrever uma situação em que o grau placentário antecede a idade gestacional esperada (37). Esta nomenclatura pode gerar angústia para as pacientes e muitas vezes para os obstetras, que podem indicar cesarianas desnecessárias, principalmente em fetos prematuros. No entanto, outros estudos indicam que a classificação de Grannum é de limitado valor para determinar tanto a maturidade fetal como possíveis desfechos adversos, sugerindo que o aumento do grau placentário se deve à maturação normal das placentas (38, 39). Tem sido descrito que a presença de placenta grau III entre 31 e 34 semanas se associa com maior risco de restrição de crescimento fetal, hipertensão, sofrimento fetal, baixo peso ao nascer e baixos escores de Apgar no 5º. minuto (40, 41) porém o prognóstico perinatal não depende do grau placentário por si só, mas sim das complicações clínico-obstétricas associadas (41).

Desta forma, o envelhecimento placentário precoce isolado não é indicação de cesariana, sendo o parto vaginal recomendado. Na presença de outros fatores associados, como oligo-hidrâmnio, restrição de crescimento fetal, pré-eclâmpsia ou centralização fetal, deve-se seguir as orientações de cada condição clínica. Da mesma forma que ultrassonografia na segunda metade da gravidez não está indicada de rotina em gestações de baixo risco, também não se indica a pesquisa do grau placentário sem uma indicação específica (42).

Na verdade, em se tratando de um procedimento cirúrgico invasivo, a decisão para a realização de uma cesariana deve ser criteriosa e sempre discutida com a paciente. É necessário prover informações com base em evidências para as gestantes durante o período pré-natal de forma acessível, levando em conta as suas características e expectativas. A discussão deve envolver indicações, procedimentos envolvidos, riscos e benefícios associados, implicações para futuras gestações e partos depois de uma cesariana (19). Neste sentido, desmistificar os pretextos que são frequentemente utilizados para indicar uma cesariana sem respaldo científico pode contribuir para o empoderamento e o resgate da autonomia feminina, permitindo que realmente a mulher tome parte do processo de decisão, embasada no conhecimento das evidências mais atualizadas sobre o tema.

No próximo artigo, abordaremos especificamente outra frequente indicação de cesariana que não é respaldada por evidências científicas sólidas: uma ou mais cesarianas anteriores. Na oportunidade, discutiremos riscos e benefícios do parto vaginal depois de uma cesariana (ou, em inglês, vaginal birth after cesarean – VBAC). Condições clínicas como hipertensão, diabetes e cardiopatia materna serão abordadas no artigo seguinte. O artigo final abordará as medidas e estratégias que podem ser adotadas para reduzir a incidência de cesariana.

Nota: grande parte dos comentários deste artigo basearam-se em uma revisão da literatura publicada pela colunista na Revista FEMINA em parceria com colaboradores do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira e intitulada “Condições frequentemente associadas com cesariana, sem respaldo científico” (19).

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FONTE: http://guiadobebe.uol.com.br/parto-normal-vs-cesarea-parte-3-principais-pretextos-para-cesariana-sem-respaldo-cientifico

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